Entre gumes
Penetrantes e espessas como facas afiadas atravessam a minha
alma as angústias que escorrem dos meus olhos inchados qual ribeiro
transbordando e impetuosamente saltando as margens. Mas não é água o que
escorre da minha vida amarga, é ácido corroendo a minha pele, a minha alma, deixando
expostas as fragilidades que sempre tentei esconder e ignorar. Ignorei a falta
de respeito, a falta de amor, desprezei o próprio desprezo como se pudesse
suplantá-lo. Fingi o mesmo desprezo. A raiva que sentiam por mim,
ignorei-a, cobri-a de coragem, mas não a consegui destruir. E agora, no meio do
nada em que deixei que me transformassem, e de onde não tenho forças para sair, já
não consigo nem fingir que sou o que permiti que me roubassem, sem reclamar.
Já não posso mais…
Mas não vou desistir!
Junho de 2010
Alma amargurada
Entre o ser e o dever
António Sérgio nasceu na Índia
em 1883 e morreu em Lisboa em 1969. Foi dos pensadores mais marcantes do
Portugal contemporâneo, com uma vasta obra que se estende da teoria do
conhecimento, à filosofia política e à filosofia da educação, passando pela
filosofia da história. Escritor, pensador e pedagogo português, a sua vida foi
dedicada à reforma educacional em Portugal, tendo sido um dos fundadores do
movimento denominado Renascença Portuguesa. Foi um opositor acérrimo ao
regime salazarista.
O texto resulta de uma conferência
proferida no salão nobre do Clube Fenianos Portuenses
, em 5
de Fevereiro de 1948. António Sérgio questiona o cristianismo com que “adornam”
a civilização europeia e ocidental, socorrendo-se das «ideias e da experiência
da vida de dois dos mais célebres entre os escritores portugueses, (...): um
grande poeta e um grande orador, um filósofo monista e um sacerdote católico: Antero
de Quental, no século dezanove; António Vieira, no décimo-sétimo» (pp. 10 -11).
António Sérgio questiona veementemente os procedimentos da civilização ocidental,
que depois da queda do Império Romano, e em nome do cristianismo e da defesa da
civilização cristã, espalhou pelo mundo a barbárie e a conflitualidade,
contrariando os princípios da «doutrina pregada pelo próprio Cristo» (p. 9). Em
Antero de Quental e António Vieira, salvaguardando a diferença bissecular, reconhece
a «concordância» na «negação» da civilização cristã do seu tempo, na medida em
que para ambos, «adorar o Cristo» não significa ser Cristão, que é «o ver na
vida do Cristo uma aspiração sobre-humana, uma ascensão ao divino» (p. 11) e viver
em conformidade com o seu exemplo.
Uma dicotomia entre o nível espiritual e o material é percebida por António
Sérgio no soneto: «Palavras de um certo morto» (p. 12) e em «um opúsculo
filosófico» (p. 14), de Antero de Quental. O «alguém» ou «eu» sensível, tem de
se libertar da materialidade «egocêntrica» para atingir a «vida» espiritual, de
nível superior. Sendo Cristo «o paradigma dessa libertação» (p. 14), ser
cristão é desejar essa elevação a ser divino. A veneração de um ídolo será a mortalha que impede a elevação
espiritual da civilização ocidental que «se funda na vil oposição dos
interesses, no duro combate entre os homens para adquirir o pão e as riquezas»
(p. 15).
O desassossego evidenciado por Antero nos sonetos
«A um
crucifixo» (p. 16 - 17), perante o «anti-cristianismo da civilização cristã», parece
sobressair no «negativismo e desânimo» revelados no primeiro poema: «– Porque
morreu sem eco o eco dos teus passos…?» dando lugar, no segundo, a uma
perspectiva de esperança, que concebe o Cristo «como um saneador» do presente
(p. 18): «Não se perdeu teu sangue generoso, /nem padeceste em vão» (p. 17).
«Disseram que era um Deus e amortalharam-me», no soneto: «Palavras de um
certo morto», é a asserção de Quental com que António Sérgio confirma a tese de
um dos sermões de António Vieira, em que este afirma que «crer em Cristo» é
crer na sua divindade e «crer a Cristo» é crer a sua verdade (p. 20). Paradoxalmente,
os cristãos, «católicos no credo e hereges nos mandamentos» (p. 21), crêem em
Cristo, mas não crêem a Cristo. Não poderão, pois, identificar-se plenamente
com a civilização cristã.
António Sérgio refere ainda que a civilização europeia seria muito mais
do que a civilização do Cristo, seria
também a da democracia integral, (que
pressupõe a existência de liberdade política e, simultaneamente, de liberdade
social), e que se alcança pela democracia cooperativa, popular. Essa, sim, seria
a civilização digna de se chamar Cristã. E, deste modo, abre o caminho para a abordagem
de um dos temas inspiradores das melhores páginas de Vieira: o amor escravizante ao dinheiro, a cobiça, incompatíveis com a fé em
Cristo e que Vieira combateu, particularmente com a sua oratória, dirigindo-se a
todos quantos, na metrópole ou no Brasil, exerciam alguma forma de poder,
político ou religioso e que, servindo-se da religião e da pretensa conversão
dos indígenas à fé de Cristo (p. 30), usurpavam vergonhosamente os seus bens. Vieira
terá sido o apóstolo que preparou as consciências e, como «homem impetuoso,
imaginador activo, aferrou-se à esperança de poder executar os seus sonhos» (p.
32). Não obteve, contudo, os resultados esperados e acabou por servir as
injustiças, cedendo ao poder alheio. A dualidade de critérios que se depreende
da manifesta protecção do ameríndio e o conselho à resignação do escravo negro,
em troca da salvação eterna, iria separá-lo inevitavelmente de Antero de
Quental e, também Vieira «amortalha
Cristo», depois de o adorar (p. 33). Condenando a prática de subtracção dos
bens aos judeus pelo Santo Ofício, o que lhe custou a perseguição e a condenação,
fá-lo com o intuito patriótico de obter
o dinheiro dos judeus para financiar as companhias de comércio e evitar a
decadência económica de Portugal.
António Vieira foi vencido pelos caçadores de escravos negros e pelo
Santo Ofício, e só dois séculos depois se concretizariam as suas ideias
abolicionistas. Hoje, Vieira encontraria novos motivos para os seus sermões, os
escravos não seriam negros, mas os do capitalismo desenfreado, a bomba atómica seria
a civilização europeia «cristã nas palavras, católica no credo, herege nos
mandamentos» (p. 36).
António Sérgio, adivinhando as acusações da sociedade cristã, antecipa a réplica
dizendo que o ser humano não é perfeito porque não é perfeita a natureza da qual
faz parte e, como tal, não pode pretender-se na posse da civilização cristã,
que pressupõe a perfeição determinada pelo Pai do Céu.
Termina num tom exortativo apelando à perfeição, à construção de uma
civilização cooperativa e fraterna, uma civilização racional e de consciência.
António Sérgio aborda, indirectamente, a questão da identidade ao lançar
a dúvida sobre a quase premissa de
que a civilização europeia é maioritariamente cristã. Ao pôr em causa este dado
adquirido, questiona os valores da própria cultura europeia, que, de acordo com
a análise que faz de Vieira e de Quental, não pode dizer-se detentora de uma
identidade cristã, uma vez que não se rege pelos valores de Cristo.
A perspectiva inovadora consiste no jogo cronológico e ideológico, com
que, sabiamente, concilia e opõe os escritores escolhidos, jogo este, que realça
as contradições existentes na oratória do padre jesuíta, que depois de um
combate feroz contra o materialismo se deixa vencer por ele, em oposição a
Antero, que persiste na luta contra o positivismo e o materialismo, visando a perfeita
realização social e cultural (dos portugueses).
11 de Dezembro de
2009
Lurdes Meneses
SÉRGIO, António,
Perante a
inexistência de uma civilização cristã –
depoimentos de Antero de Quental e Padre António Vieira, 2ª ed. Lisboa:
Inquérito, 1958.